
Uma reflexão sobre a atualidade da noção de jogo em Schiller*
Por Carlos Tonelli
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“Not long ago [...] we were reading by the light of oil lamps.
Now we divide our attention between the TV,
our computer screens and our mobile phones.
But the huge technological leap wasn't supported by
any philosophical or psychological thought,
nor by any great art. People have forgotten
their souls - they haven't time
or space to devote to them.”
Zbigniew Preisner, Compositor
.
O Critico teatral John Grill escreve, em relação à encenação de Hamletmachine por Robert Wilson que: “Quinze atores enfilerados nas laterais do palco movem-se um a um formando um estranho tableau; mulheres voam em cadeira inclinadas sobre uma longa e fina mesa de metal, outra se arrasta para se esconder numa árvore; uma outra gira uma cadeira driblando e fazendo caretas. Homens andam com arrogância, saltam, voam e um, usado preto dos pés a cabeça, corre para tapar os olhos de uma mulher vestida como uma condessa espanhola.”[1] Depois desta descrição, mais adiante, o crítico acrescenta: “Como acontece com as outras obras desse autor, se você aceita sua excêntrica premissa teatral, chega o momento em que a mágica começa a fazer efeito.”
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Qual seria a “excêntrica premissa teatral” de Heiner Miller e Robert Wilson? E como sua “mágica” começa a fazer efeito? Para completar, recorro a uma observação de Galizia em relação ao trabalho de Wilson: “Como não existe, aqui, desenvolvimento narrativo, todas as atividades no palco permanecem em um estado de ‘presente absoluto’, através da contínua estimulação da energia do perfomer.”[2] Este “presente absoluto” perseguido por Wilson não seria uma das características recorrentes em diversas experiências artísticas contemporâneas que buscam, paradoxalmente, afirmar sua especificidade enquanto linguagem e, ao mesmo tempo, resistem a uma função semântica? Podemos dizer que a luta travada no campo da arte contemporânea, no qual a palavra tem força não pelo que diz mas simplesmente na tentativa de ser palavra, de um significante que se recusa a ser veículo de um significado, remonta a busca de um “puro belo”. A busca desta “presença absoluta”, que é aparência, e sua impossibilidade (porque é sempre fugidia para o campo da significação), revela uma dinâmica em que a arte luta para não dizer nada e, assim, poder ser algo. Se a trincheira da arte é travada no campo de nossas faculdades mentais, é pelo “jogo lúdico”, conforme desenvolvido por Schiller, que o homem terá a possibilidade de combate. É a “educação estética” que definirá a possibilidade da “mágica” acontecer na platéia de Wilson.
A partir da teoria estética desenvolvida por Kant na Crítica do Juízo, Schiller encontra a base teórica que utiliza para desenvolver a noção de “jogo estético”, agregando ao postulado filosófico de Kant uma dinâmica política, pensando-a a partir de uma perspectiva formativa do homem e da sociedade. A conseqüência, ainda válida ao mundo contemporâneo, é uma abertura para se debater a própria práxis artística e, no interior deste debate, resgatar do hall de clichês do século XX o conceito de belo e reintroduzi-lo na arena Estética. Pensar a atualidade a partir da noção de jogo desenvolvida por Schiller é possibilitar, como mostra Marcuse, uma revalorização de nossas faculdades sensíveis sem que isso implique um retorno ao “Estado Natural”, pois essa valorização não se dá em detrimento do entendimento. Igualmente, adverte para o risco da dominância de uma subjetividade prática que, como na época de Schiller, sobrepunha o bem comum a liberdade individual, desestabilizando o frágil paradoxo que equilibra a unidade do Estado (ideal) e a multiplicidade do Sujeito (real).
Se, no início de suas cartas, Schiller via o estético como instrumento transformador que possibilitaria um salto do homem natural para o homem moral, sem que este se convertesse em um tirano de si mesmo, um bárbaro, ao final é o próprio estado estético que se torna a aspiração de Schiller. Nem o Estado natural no qual o homem é prisioneiro de suas determinações naturais[3] nem o estado moral no qual a liberdade formal aparta o homem da natureza. E sim, o estado estético, no qual a Arte deixa de servir a política e passa a ser, ela mesma, política. “O livre jogo estético e a universalidade do julgamento de um gosto definem uma liberdade e uma igualdade novas, diferente das que o governo revolucionário quis impor sob a forma de uma lei: uma liberdade e uma igualdade não mais abstratas, mas sensíveis.”[4]. No entanto, isto não significa afirmar uma perda de especificidade da arte. Pelo contrário, a arte só pode, realmente, ser política, na medida em que preserva sua especificidade estética, daí a importância da reintrodução da noção de beleza enquanto fenômeno deste jogo das faculdades investigado por Schiller. Caso contrário, destituída de noção do belo, a arte oscilaria entre a subserviência a dois patrões, ora instrumento do estado moral ora, fetichizando-se, objeto do estado natural. Ou conforme Rancière: “O belo é o que resiste ao mesmo tempo à determinação conceitual e a atração dos bens consumíveis”. Convém, neste ponto, refletir um pouco em relação ao conceito de beleza em Kant.
É pelo prazer comunicável que demandamos uma objetividade e uma universalidade do belo. Porém, com a ausência de um conceito determinado esta demanda não se configura normativamente, ou, quando há intervenção conceitual: “o juízo estético deixa de ser puro, ao mesmo tempo que a beleza deixa de ser livre.”[5]. O “isto é belo” é uma sentença sobre si, um “euautonomo”[6]. O que não exclui a participação do entendimento, pois, sem ele, seria impossível a reflexão formal do objeto singular: “...a imaginação em sua liberdade pura entra em acordo com o entendimento em sua legalidade não especificada. Poder-se-ia dizer com rigor que a imaginação, aqui, ‘esquematiza sem conceito’”[7]. Este “esquematizar sem conceito” que Deleuze aponta são as próprias faculdades operando em total potencialidade, pois, esvaziadas de um fim, não encontram um limite conceitual. Ou, pelas palavras de Schiller:
“Numa obra de arte verdadeiramente bela o conteúdo nada deve fazer, a forma é tudo; somente pela forma que se age sobre o homem como todo, ao passo que o conteúdo visa a forças particulares”[8]
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Façamos um parênteses aqui para ousarmos incluir no debate uma noção temporal. O conceito só existe como uma rememoração no tempo. Ele é um resultado do entendimento que opera lastreado pelo tempo passado para, sobre o tempo presente, projetar-lhe um fim . O “esquematizar sem conceito” seria, portanto, um “esquematizar sem passado”. A faculdade imaginativa na experiência estética é livre porque é liberta de apriorismos. Somos remetidos para fora do tempo e, simultaneamente, presentificados pela matéria. Não se trata de uma atemporalidade (como no caso do sublime, diante do informe ou disforme), mas de um tensionamento de nossa persepção temporal. Via afecção, somos confrontados pela matéria que age sobre nós e nos demanda sua reflexão singular na imaginação, isto é, a forma. Mas, no juízo estético, esta forma é engendrada pelo entendimento em um “em si”, desprovido de conceito. Dá-se, assim, na experiência estética, uma experiência inaugural no tempo, porque é sua absoluta presentificação, mas não do tempo, porque não provém de sua causalidade. O resultado é que, conforme Deleuze aponta “a imaginação encontra-se liberada da coação do entendimento que ela sofria ainda no esquematismo; torna-se capaz de refletir a forma livremente.”
Enfim, a experiência estética contém uma paradoxal resistência em relação ao tempo: uma resistência de adesão, o que lhe confere uma autonomia sem a qual seria mero objeto de representação e, simultaneamente, uma resistência a dissidência, pois, operando no reino das faculdades sensíveis ela é uma intervenção na percepção física no tempo. Em outras palavras, pode-se falar que, entre o homem natural, prisioneiro de seu tempo sensível e o homem moral, prisioneiro de seu tempo histórico, há o homem estético, livre em seu anacronismo.
Voltando ao debate em relação à relevância da noção de jogo desenvolvida por Schiller para o mundo contemporâneo, recorro primeiro, para ler as bases culturais desse mundo, a análise desenvolvida por Marcuse onde:
“A cultura é produto da combinação e interação desses dois impulsos [sensual e formal]. Mas na civilização estabelecida, a sua relação tem sido antagônica, em vez de reconciliar ambos os impulsos, tornando a sensibilidade racional e a razão sensual, a civilização submeteu à razão de tal modo que a primeira, se acaso logra reafirmar-se, o faz de formas destrutivas e selvagens, enquanto a tirania da razão empobrece e barbariza a sensualidade.”[9].
Marcuse segue lembrando que a solução apontada por Schiller para superação desse impasse passa pela atuação de um terceiro impulso, o “impulso lúdico”, que libertaria o homem das “...coações, externas e internas, físicas e morais – quando não é reprimido pela lei nem pela necessidade”. Porém, a estrutura coercitiva da qual Marcuse se refere constitui o próprio princípio de realidade na qual o homem se equilibra no jogo de suas faculdades e, portanto, sua superação só seria possível com “...uma revolução total no modo de percepção e sentimento”. Ressalta-se que para Marcuse, neste ponto, a universalidade da experiência estética só é efetiva politicamente enquanto uma realidade instalada “...tal revolução só se torna possível se a civilização tiver atingido a mais alta maturidade física e intelectual”, ou seja, a universalidade estética não age por sua própria possibilidade de vir-a-ser. Mas, se entendermos que os três tempos ___ do estado natural, moral e estético, não estão alinhados em uma perspectiva histórica linear, e sim que são tempos que co-existem no espaço, então podemos entender que o poder transformador do impulso lúdico já é operante per sí. O próprio Marcuse indica que é através do jogo lúdico das faculdades que o homem terá a possibilidade de “abolir os controles repressivos que o homem impôs à sensualidade.”[10] sem que esta abolição signifique devolver o homem à predominância de seus impulsos naturais, risco anulado pela mediação do prazer comunicável, que aspira a uma universalidade: “o próprio indivíduo livre deve originar a harmonia entre a gratificação individual e a universal”[11].
Uma das conseqüências implicada nesta harmonia das faculdades, é a condição de “contemplação”[12]. Ou, conforme Schiller: “O desenvolvimento precoce ou tardio do impulso estético para a arte depende do carinho com que o homem saiba deter-se na pura aparência.”[13] Este “deter-se na pura aparência” já representa uma revolução no modo de apreciação da obra de arte e, na verdade, em seu próprio posicionamento enquanto obra, isto é, “objeto” de apreciação. A experiência estética não é proporcionada por uma satisfação utilitária. A beleza, portanto, não reside em um objeto de representação. Ela se dá na própria relação entre o indivíduo e a obra, seu processo de significação não é previamente determinado (nem sequer pelo artista) mas se dá singular e inauguralmente no presente da apreciação. Ambos, homem e obra, são chamados pela experiência para marcarem suas presenças naquele tempo-instante. A contemplação acima referida não é um puro estado passivo do homem distanciado da obra, mas um estado ativo de interação deste com a obra sem mediações representacionais. Contemplar não é alienar-se, mas um ato criativo de interação e contato entre o homem e o “objeto” de arte no qual, os dois, são recriados mutuamente em um constante processo de significação chamado “Obra”. Daí que pensar a arte fora de qualquer utilitarismo e devolver-lhe sua capacidade de estar no mundo de forma desinteressada não significa sua alienação deste mesmo mundo. Sua inutilidade não é inconseqüente. Pelo contrário, é por ela que podemos ter suspenso o princípio de realidade que rege nosso tempo e, assim, vê-lo enquanto uma realidade historicamente construída.
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Se, em sua dramaturgia, Heiner Miller abdica da fábula não é por traição ao legado brechtiano, mas por entender que nada pode ser mais político do que uma forma livre de conteúdos conceituais, por mais dialéticos que estes sejam. Em Brecht, a história é mostrada como fábula que se mostra como fábula, construída, evidenciando seu caráter histórico, portanto cultural. Ainda assim a operação se dá sob o pilar de um tempo passado como um apelo ao futuro, ou seja, a imagem serve como suporte a uma concepção linear da história. No teatro de Miller a força política está condensada na própria imagem atualizada no palco e sua efetiva relação com o imagético da platéia. Os referentes históricos utilizados por Miller no interior de sua dramaturgia não servem a uma construção sintagmática da fábula (que nem há), mas como elementos concretizados apenas enquanto imagens, com total liberdade referencial. Podemos dizer que em Miller o histórico é que serve como suporte para a construção da imagem. Imagem que, na montagem de Robert Wilson, exige da platéia uma postura ativa, criativa, na qual os elementos plásticos não explicam o dramático, mas convivem no mesmo tempo-espaço, distendido em ritmos não cotidianos. Ou seja, o efeito de estranhamento não se dá pelo conteúdo (através do entendimento conceitual, subjetivamente), mas pela própria forma que atinge, física e imageticamente (ou, psiquicamente), a platéia.
“Não se realizando sob um conceito determinado, o livre jogo da imaginação e do entendimento não pode ser intelectualmente conhecido, mas apenas sentido.”[14]
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[1] GILL, John. Crítica internacional, in Cadernos de Teatro nº 123. Editora O Tablado, 1989.
[2] GALIZIA, (p. 84. )
[3] Schiller, F – Carta III (p. 40)
[4] Rancière
[5] Deleuze (p. 67)
[6] Deleuze (p. 67)
[7] Deleuze (p. 67)
[8] Schiller (p. 117)
[9] Marcuse (p. 167)
[10] Marcuse (p.167)
[11] Schiller (p. 138)
[12] “A natureza, o mundo objetivo, seriam então experimentados primordialmente, não como domínio sobre o homem (tal como na sociedade primitiva) nem como dominados pelo homem (tal como na civilização estabelecida) mas, pelo contrário, como objetos de contemplação.” MARCUSE (P. 168)
[13] Schiller (p.138)
[14] Deleuze (p. 68)
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“Not long ago [...] we were reading by the light of oil lamps.
Now we divide our attention between the TV,
our computer screens and our mobile phones.
But the huge technological leap wasn't supported by
any philosophical or psychological thought,
nor by any great art. People have forgotten
their souls - they haven't time
or space to devote to them.”
Zbigniew Preisner, Compositor
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O Critico teatral John Grill escreve, em relação à encenação de Hamletmachine por Robert Wilson que: “Quinze atores enfilerados nas laterais do palco movem-se um a um formando um estranho tableau; mulheres voam em cadeira inclinadas sobre uma longa e fina mesa de metal, outra se arrasta para se esconder numa árvore; uma outra gira uma cadeira driblando e fazendo caretas. Homens andam com arrogância, saltam, voam e um, usado preto dos pés a cabeça, corre para tapar os olhos de uma mulher vestida como uma condessa espanhola.”[1] Depois desta descrição, mais adiante, o crítico acrescenta: “Como acontece com as outras obras desse autor, se você aceita sua excêntrica premissa teatral, chega o momento em que a mágica começa a fazer efeito.”
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Qual seria a “excêntrica premissa teatral” de Heiner Miller e Robert Wilson? E como sua “mágica” começa a fazer efeito? Para completar, recorro a uma observação de Galizia em relação ao trabalho de Wilson: “Como não existe, aqui, desenvolvimento narrativo, todas as atividades no palco permanecem em um estado de ‘presente absoluto’, através da contínua estimulação da energia do perfomer.”[2] Este “presente absoluto” perseguido por Wilson não seria uma das características recorrentes em diversas experiências artísticas contemporâneas que buscam, paradoxalmente, afirmar sua especificidade enquanto linguagem e, ao mesmo tempo, resistem a uma função semântica? Podemos dizer que a luta travada no campo da arte contemporânea, no qual a palavra tem força não pelo que diz mas simplesmente na tentativa de ser palavra, de um significante que se recusa a ser veículo de um significado, remonta a busca de um “puro belo”. A busca desta “presença absoluta”, que é aparência, e sua impossibilidade (porque é sempre fugidia para o campo da significação), revela uma dinâmica em que a arte luta para não dizer nada e, assim, poder ser algo. Se a trincheira da arte é travada no campo de nossas faculdades mentais, é pelo “jogo lúdico”, conforme desenvolvido por Schiller, que o homem terá a possibilidade de combate. É a “educação estética” que definirá a possibilidade da “mágica” acontecer na platéia de Wilson.
A partir da teoria estética desenvolvida por Kant na Crítica do Juízo, Schiller encontra a base teórica que utiliza para desenvolver a noção de “jogo estético”, agregando ao postulado filosófico de Kant uma dinâmica política, pensando-a a partir de uma perspectiva formativa do homem e da sociedade. A conseqüência, ainda válida ao mundo contemporâneo, é uma abertura para se debater a própria práxis artística e, no interior deste debate, resgatar do hall de clichês do século XX o conceito de belo e reintroduzi-lo na arena Estética. Pensar a atualidade a partir da noção de jogo desenvolvida por Schiller é possibilitar, como mostra Marcuse, uma revalorização de nossas faculdades sensíveis sem que isso implique um retorno ao “Estado Natural”, pois essa valorização não se dá em detrimento do entendimento. Igualmente, adverte para o risco da dominância de uma subjetividade prática que, como na época de Schiller, sobrepunha o bem comum a liberdade individual, desestabilizando o frágil paradoxo que equilibra a unidade do Estado (ideal) e a multiplicidade do Sujeito (real).
Se, no início de suas cartas, Schiller via o estético como instrumento transformador que possibilitaria um salto do homem natural para o homem moral, sem que este se convertesse em um tirano de si mesmo, um bárbaro, ao final é o próprio estado estético que se torna a aspiração de Schiller. Nem o Estado natural no qual o homem é prisioneiro de suas determinações naturais[3] nem o estado moral no qual a liberdade formal aparta o homem da natureza. E sim, o estado estético, no qual a Arte deixa de servir a política e passa a ser, ela mesma, política. “O livre jogo estético e a universalidade do julgamento de um gosto definem uma liberdade e uma igualdade novas, diferente das que o governo revolucionário quis impor sob a forma de uma lei: uma liberdade e uma igualdade não mais abstratas, mas sensíveis.”[4]. No entanto, isto não significa afirmar uma perda de especificidade da arte. Pelo contrário, a arte só pode, realmente, ser política, na medida em que preserva sua especificidade estética, daí a importância da reintrodução da noção de beleza enquanto fenômeno deste jogo das faculdades investigado por Schiller. Caso contrário, destituída de noção do belo, a arte oscilaria entre a subserviência a dois patrões, ora instrumento do estado moral ora, fetichizando-se, objeto do estado natural. Ou conforme Rancière: “O belo é o que resiste ao mesmo tempo à determinação conceitual e a atração dos bens consumíveis”. Convém, neste ponto, refletir um pouco em relação ao conceito de beleza em Kant.
É pelo prazer comunicável que demandamos uma objetividade e uma universalidade do belo. Porém, com a ausência de um conceito determinado esta demanda não se configura normativamente, ou, quando há intervenção conceitual: “o juízo estético deixa de ser puro, ao mesmo tempo que a beleza deixa de ser livre.”[5]. O “isto é belo” é uma sentença sobre si, um “euautonomo”[6]. O que não exclui a participação do entendimento, pois, sem ele, seria impossível a reflexão formal do objeto singular: “...a imaginação em sua liberdade pura entra em acordo com o entendimento em sua legalidade não especificada. Poder-se-ia dizer com rigor que a imaginação, aqui, ‘esquematiza sem conceito’”[7]. Este “esquematizar sem conceito” que Deleuze aponta são as próprias faculdades operando em total potencialidade, pois, esvaziadas de um fim, não encontram um limite conceitual. Ou, pelas palavras de Schiller:
“Numa obra de arte verdadeiramente bela o conteúdo nada deve fazer, a forma é tudo; somente pela forma que se age sobre o homem como todo, ao passo que o conteúdo visa a forças particulares”[8]
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Façamos um parênteses aqui para ousarmos incluir no debate uma noção temporal. O conceito só existe como uma rememoração no tempo. Ele é um resultado do entendimento que opera lastreado pelo tempo passado para, sobre o tempo presente, projetar-lhe um fim . O “esquematizar sem conceito” seria, portanto, um “esquematizar sem passado”. A faculdade imaginativa na experiência estética é livre porque é liberta de apriorismos. Somos remetidos para fora do tempo e, simultaneamente, presentificados pela matéria. Não se trata de uma atemporalidade (como no caso do sublime, diante do informe ou disforme), mas de um tensionamento de nossa persepção temporal. Via afecção, somos confrontados pela matéria que age sobre nós e nos demanda sua reflexão singular na imaginação, isto é, a forma. Mas, no juízo estético, esta forma é engendrada pelo entendimento em um “em si”, desprovido de conceito. Dá-se, assim, na experiência estética, uma experiência inaugural no tempo, porque é sua absoluta presentificação, mas não do tempo, porque não provém de sua causalidade. O resultado é que, conforme Deleuze aponta “a imaginação encontra-se liberada da coação do entendimento que ela sofria ainda no esquematismo; torna-se capaz de refletir a forma livremente.”
Enfim, a experiência estética contém uma paradoxal resistência em relação ao tempo: uma resistência de adesão, o que lhe confere uma autonomia sem a qual seria mero objeto de representação e, simultaneamente, uma resistência a dissidência, pois, operando no reino das faculdades sensíveis ela é uma intervenção na percepção física no tempo. Em outras palavras, pode-se falar que, entre o homem natural, prisioneiro de seu tempo sensível e o homem moral, prisioneiro de seu tempo histórico, há o homem estético, livre em seu anacronismo.
Voltando ao debate em relação à relevância da noção de jogo desenvolvida por Schiller para o mundo contemporâneo, recorro primeiro, para ler as bases culturais desse mundo, a análise desenvolvida por Marcuse onde:
“A cultura é produto da combinação e interação desses dois impulsos [sensual e formal]. Mas na civilização estabelecida, a sua relação tem sido antagônica, em vez de reconciliar ambos os impulsos, tornando a sensibilidade racional e a razão sensual, a civilização submeteu à razão de tal modo que a primeira, se acaso logra reafirmar-se, o faz de formas destrutivas e selvagens, enquanto a tirania da razão empobrece e barbariza a sensualidade.”[9].
Marcuse segue lembrando que a solução apontada por Schiller para superação desse impasse passa pela atuação de um terceiro impulso, o “impulso lúdico”, que libertaria o homem das “...coações, externas e internas, físicas e morais – quando não é reprimido pela lei nem pela necessidade”. Porém, a estrutura coercitiva da qual Marcuse se refere constitui o próprio princípio de realidade na qual o homem se equilibra no jogo de suas faculdades e, portanto, sua superação só seria possível com “...uma revolução total no modo de percepção e sentimento”. Ressalta-se que para Marcuse, neste ponto, a universalidade da experiência estética só é efetiva politicamente enquanto uma realidade instalada “...tal revolução só se torna possível se a civilização tiver atingido a mais alta maturidade física e intelectual”, ou seja, a universalidade estética não age por sua própria possibilidade de vir-a-ser. Mas, se entendermos que os três tempos ___ do estado natural, moral e estético, não estão alinhados em uma perspectiva histórica linear, e sim que são tempos que co-existem no espaço, então podemos entender que o poder transformador do impulso lúdico já é operante per sí. O próprio Marcuse indica que é através do jogo lúdico das faculdades que o homem terá a possibilidade de “abolir os controles repressivos que o homem impôs à sensualidade.”[10] sem que esta abolição signifique devolver o homem à predominância de seus impulsos naturais, risco anulado pela mediação do prazer comunicável, que aspira a uma universalidade: “o próprio indivíduo livre deve originar a harmonia entre a gratificação individual e a universal”[11].
Uma das conseqüências implicada nesta harmonia das faculdades, é a condição de “contemplação”[12]. Ou, conforme Schiller: “O desenvolvimento precoce ou tardio do impulso estético para a arte depende do carinho com que o homem saiba deter-se na pura aparência.”[13] Este “deter-se na pura aparência” já representa uma revolução no modo de apreciação da obra de arte e, na verdade, em seu próprio posicionamento enquanto obra, isto é, “objeto” de apreciação. A experiência estética não é proporcionada por uma satisfação utilitária. A beleza, portanto, não reside em um objeto de representação. Ela se dá na própria relação entre o indivíduo e a obra, seu processo de significação não é previamente determinado (nem sequer pelo artista) mas se dá singular e inauguralmente no presente da apreciação. Ambos, homem e obra, são chamados pela experiência para marcarem suas presenças naquele tempo-instante. A contemplação acima referida não é um puro estado passivo do homem distanciado da obra, mas um estado ativo de interação deste com a obra sem mediações representacionais. Contemplar não é alienar-se, mas um ato criativo de interação e contato entre o homem e o “objeto” de arte no qual, os dois, são recriados mutuamente em um constante processo de significação chamado “Obra”. Daí que pensar a arte fora de qualquer utilitarismo e devolver-lhe sua capacidade de estar no mundo de forma desinteressada não significa sua alienação deste mesmo mundo. Sua inutilidade não é inconseqüente. Pelo contrário, é por ela que podemos ter suspenso o princípio de realidade que rege nosso tempo e, assim, vê-lo enquanto uma realidade historicamente construída.
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Se, em sua dramaturgia, Heiner Miller abdica da fábula não é por traição ao legado brechtiano, mas por entender que nada pode ser mais político do que uma forma livre de conteúdos conceituais, por mais dialéticos que estes sejam. Em Brecht, a história é mostrada como fábula que se mostra como fábula, construída, evidenciando seu caráter histórico, portanto cultural. Ainda assim a operação se dá sob o pilar de um tempo passado como um apelo ao futuro, ou seja, a imagem serve como suporte a uma concepção linear da história. No teatro de Miller a força política está condensada na própria imagem atualizada no palco e sua efetiva relação com o imagético da platéia. Os referentes históricos utilizados por Miller no interior de sua dramaturgia não servem a uma construção sintagmática da fábula (que nem há), mas como elementos concretizados apenas enquanto imagens, com total liberdade referencial. Podemos dizer que em Miller o histórico é que serve como suporte para a construção da imagem. Imagem que, na montagem de Robert Wilson, exige da platéia uma postura ativa, criativa, na qual os elementos plásticos não explicam o dramático, mas convivem no mesmo tempo-espaço, distendido em ritmos não cotidianos. Ou seja, o efeito de estranhamento não se dá pelo conteúdo (através do entendimento conceitual, subjetivamente), mas pela própria forma que atinge, física e imageticamente (ou, psiquicamente), a platéia.
“Não se realizando sob um conceito determinado, o livre jogo da imaginação e do entendimento não pode ser intelectualmente conhecido, mas apenas sentido.”[14]
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[1] GILL, John. Crítica internacional, in Cadernos de Teatro nº 123. Editora O Tablado, 1989.
[2] GALIZIA, (p. 84. )
[3] Schiller, F – Carta III (p. 40)
[4] Rancière
[5] Deleuze (p. 67)
[6] Deleuze (p. 67)
[7] Deleuze (p. 67)
[8] Schiller (p. 117)
[9] Marcuse (p. 167)
[10] Marcuse (p.167)
[11] Schiller (p. 138)
[12] “A natureza, o mundo objetivo, seriam então experimentados primordialmente, não como domínio sobre o homem (tal como na sociedade primitiva) nem como dominados pelo homem (tal como na civilização estabelecida) mas, pelo contrário, como objetos de contemplação.” MARCUSE (P. 168)
[13] Schiller (p.138)
[14] Deleuze (p. 68)
*Esse texto é um trabalho que escrevi como resultado do curso de Leitura da Arte, ministrado pelo Professor Luiz Camilo Osorio e que teve como objeto de estudo o livro Sobre a Formação Estética da Humanidade de SCHILLER.
Um comentário:
ta foda isso ae! lindo!
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