A partir da leitura de Antônio Candido podemos assistir ao filme “A Marvada Carne”, de André Klotzel, como uma metáfora de uma sociedade em transformação. É o ponto de suspensão em que podemos identificar os elementos de uma tradição caipira (muito bem delimitados através da linguagem, dos costumes, vestuários, alimentação, etc.) e seu contraste com uma outra dinâmica cultural, sendo que esta, apesar de só aparecer concretamente ao final do filme, está implícita desde o início, subliminarmente agindo através do desejo do protagonista, como motor de uma odisséia que o tirará do isolamento social e culminará em sua inserção na cultura urbana.
O Caipira e suas matrizes, formação no isolamento.Na abertura do filme, nos deparamos com o caipira em sua condição originária. Filho da dinâmica bandeirante, tem como traço marcante o nomadismo e, conseqüentemente, a precariedade de uma habitação e bens materiais sempre provisórios. Sua casa é o mundo que o rodeia, a construção é apenas mais uma dormida, um rancho, no qual se abrigará durante o tempo em que sua atividade extrativista e predatória o satisfazer ali. Ou, conforme depoimento colhido por Candido “uma árvore com sombra era o bastante para um homem morar.”
Paredes de taipa, cama de palha, panela de barro em fogareiro de pedra, cuia, um pequeno roçado e, sempre, a espingarda do lado. É neste cenário, rústico, que Nhô Quim sobrevive. E é este o cenário que reflete um tipo de vida baseada numa economia fechada, no qual a precariedade de suas técnicas artesanais como, por exemplo, a queimada (erosiva a longo prazo mas satisfatória a curto) são compensadas por sua possibilidade de mobilidade, garantindo o necessário a sua subsistência. Sua produção é condicionada pela sua necessidade imediata, não visa a acumulação nem a geração de renda excedente, que proporcionaria as relações de troca características de uma sociedade de economia aberta. Segundo Candido: “Para o Caipira, a agricultura extensiva, itinerante, foi um recurso para estabelecer o equilíbrio ecológico: recurso para ajustar as necessidades de sobrevivência à falta de técnicas capazes de proporcionar rendimento maior da terra”.
E, nessa dinâmica de isolamento, seu processo de identificação é atrofiado, isto é, a herança cultural de sua ancestralidade, seja lusitana ou indígena, é reduzida aos elementos necessários a sua subsistência, perdendo os traços que o identifique à uma sociedade mais heterogenia, pois estes só se manteriam pela manutenção de uma dinâmica social mais estreita nas relações de contato. Ou, conforme Candido “...na cultura e na sociedade caipira há não apenas permanência de traços ___ dos traços que desde logo se estabelecem como “mínimo social” ____, mas retorno, perda de formas mais ricas de sociabilidade e cultura, por parte dos que iam se incorporando nela, a partir de grupos mais civilizados.” Podemos aqui estabelecer um paralelo com a afirmação do antropólogo Darcy Ribeiro, para quem, mais do que a herança que recebe de suas matrizes étnicas, a identidade do povo brasileiro e formada a partir de um processo que ele denomina como “Ninguemtude”. Ou seja, perda de sua referência paterna (lusitana), da qual é renegado, e materna (indígena), a qual renega. Isto o coloca em uma posição de “ninguém” e, a partir dessa condição, isolada, se relacionará com a realidade de forma concreta, utilizando os elementos culturais que lhe forem convenientes (mas sem rigor) para a sua satisfação. Conforme ribeiro:
“Esse modo de vida, rude e pobre, era o resultado das regressões sociais do processo deculturativo. Do tronco português, o paulista perdera a vida comunitária da vila, a disciplina patriarcal das sociedades agrárias tradicionais, o arado e a dieta baseada no trigo no azeite e no vinho. Do tronco indígena, perdera a autonomia da aldeia igualitária, toda voltada para o provimento da própria subsistência, a igualdade do trato social de sociedades não estratificadas em classes, a solidariedade da família extensa, o virtuosismo de artesãos, cujo o objetivo era viver ao ritmo que seus antepassados sempre viveram ”
[1]O resultado de um povoamento disperso com uma economia de subsistência própria do semi-nomadismo foi a formação de um indivíduo muito menos ligado a um projeto de nação ____ ao qual era alheio e dispensável na sociedade escravocrata colonial e imperial ____ e sua identificação muito mais estreitas com seu meio ambiente (provedor de sua subsistência) e em um núcleo social encerrado em relações vicinais no qual o caipira “...aparece ele próprio como seguimento de um vasto meio, ao mesmo tempo natural, social e sobrenatural.” (Candido). A simbiose do homem com seu meio ambiente pode ser constatada, no filme, a partir da utilização de figuras folclóricas e religiosas como mediadoras entre a natureza e o homem, criando um arsenal mítico rico de curupiras, sacis, e santos casamenteiros. A força mediadora desses elementos simbólicos vai sendo relativizada a partir da integração dessa sociedade no conjunto de uma sociedade mais ampla. Conforme Candido; “ Esta familiaridade do homem com a Natureza vai sendo atenuada, a medida que recursos técnicos se interpõe entre ambos, e que a subsistência não depende mais de maneira exclusiva do meio circundante.” Ou, segundo Nhô Quim: “Pois oiça o que lhe digo: naqueles tempo num era cumo hoje não, naqueles tempo acuntecia muita coisa!”
Enfim, podemos resumir a condição originária do caipira pela fala de Nhô Quim no plano sequência que abre o filme: “Parece inté qui tô vendo... eu ali vivendo minha vida no zeu, suzinho, suzinho, suzinho... era eu e Deu.”
O elemento desestabilizadorAlgo de novo começa a operar em Nhô Quim. Não basta mais sua rotina de “sol à sol”. um forte desejo o faz questionar a mesmice de sua dieta de “farinha, feijão e arroz”. Não basta a carne de caça. Nhô Quim quer mais, quer carne de Gado, produto fora do alcance de sua atividade econômica, que é baseada no roçado de subsistência e na caça. Produto que depende da atividade pecuária. Atividade que é uma cultura sujeita a lógica de mercado. Lógica que é estranha para Nhô Quim. Podemos perceber então como que, através da carne, um desejo, o cineasta introduz no filme o elemento urbano. Sem recorrer a imagens visualmente contrastantes entre o caipira e o urbano, o diretor consegue inserir o elemento de desestabilização (urbano) utilizando unicamente seu potencial simbólico a partir do que Candido identifica como “fome psíquica”. Ou seja, mais do que a fome biológica, uma fome simbólica, provocada por um alimento que, escasso na dieta rural, “...constitui fator de insegurança, interferindo no equilíbrio geral da personalidade.” A carne de gado sintetiza, aqui, um ponto de transição. A perda de um elemento da velha tradição caipira não é compensada pela substituição de seu equivalente urbano, que têm agregado ao seu valor material o status de “civilidade”. Conforme Candido: “Uma importante necessidade alimentar, como a carne, sofre severa restrição, pois a diminuição da caça não é compensada por um abastecimento regular de carne de vaca.”. É na resolução desse impasse que Nhô Quim se lança ao mundo, a novos “ranchos” do universo caipira.
O Arraial, sistema vicinal de sociedadeNhô Quim nos conduz ao mundo caipira em sua situação social nuclear básica: o bairro (ou arraial). O cenário é de poucas casas esparsas em meio a um vale, correspondendo ao depoimento de Candido: “A unidade básica da cultura caipira é o bairro. O bairro é aquela porção do território em que as pessoas não têm contato imediato, mas na qual todos se sentem como pertencendo a uma mesma comunidade”
[2]. Podemos sintetizar na afirmação de um caboclo mencionado por Candido no mesmo depoimento: “O bairro é uma naçãozinha”
Logo em seu primeiro diálogo o personagem central revela vários elementos comportamentais característicos do caipira. A começar pela receptividade do anfitrião, Nhô Tôto, que ao perceber o estranho visitante em suas paragens, responde a todas as perguntas laconicamente, se esquivando em dar o nome do vilarejo e até desconhecendo seu irmão. A reação arredia de Nhô Tôto não nega a hospitalidade caipira, que será comprovada adiante, mas confirma a fama de desconfiança que lhe é típica. Em detrimento dos lugares comuns que se fixaram no discurso em relação a rudeza social do caipira, como sendo conseqüência, por exemplo, de uma herança de sua genética indígena ou a uma preservação dos hábitos bandeirantes, Candido afirma que esta resulta muito mais de sua condição estrutural imediata, baseada na economia fechada: “O fator principal se encontra todavia no próprio tipo de economia e povoamento, que ilhava as choupanas e os bairros pela agricultura itinerante de subsistência”. Ou ainda, “É que os costumes ligados à atividade agrícola seminômade e ao povoamento esparso não podiam favorecer amenidade no trato, e davam lugar as maneiras esquivas, de pouco desenvolvimento mental e social próprios do homem segregado.”
Um dado curioso na cena anteriormente mencionada, que se passa em um contexto caipira tradicional, anterior às transformações da urbanização, é que nela já podemos identificar um elemento que será embrionário da transformação da dinâmica da sociedade caipira: o bloco familiar. Quando a esposa de Nhô Tôto nos informa da viúva do irmão deste, ela nos indica que dentro do universo do arraial, que tem por formação social o sistema vicinal, já está inserido um núcleo familiar que irá estreitar a formação social mínima do sistema vicinal: “Entre estas formações, mencionamos o significado novo adquirido pelos ´blocos familiares`, isto é, a vizinhança imediata de membros da mesma família, formando, dentro do grupo, um subgrupo coeso e mais disposto a solidariedade vicinal.”
Outro elemento comportamental que aparece reiterativamente no filme é o Lazer. Segundo Candido, a atividade de lazer não está ligada a uma mera atividade recreativa, ela não se dá como uma ruptura do cotidiano (como nas sociedades urbanas). O lazer constitui um importante elemento da subsistência caipira, vital para sua dieta alimentar, através da caça e da pesca.
Mas, voltando ao bairro, podemos verificar no filme diversos momentos que confirmam o depoimento de Candido no qual: “O caipira isolado dos centros urbanos , periodicamente, se encontra em função das necessidades comunitárias do bairro.”
[3]. Assim, temos o exemplo da construção da casa de Nho Quim que, sem a ajuda dos vizinhos, não poderia ser construída. Podemos ver como que o mutirão aparece como compensador de uma sociedade não-mercantilizada, na qual a relação de trabalho não é normatizada por um contrato mas socializada por laços de solidariedade e marcada pelo lúdico e o festivo. O mesmo festivo que serve como premiação de um coletivo em uma tarefa laborativa (construção da casa) é o que serve como liga da festa religiosa, no qual todo o conjunto daquela sociedade mobiliza suas forças para sua realização.
É a partir da mesma lógica do sistema vicinal que se busca sanar as deficiências geradas por deficiências locais e econômicas. No filme, por exemplo, podemos ver a matança de um porco que terá a carne, conforme a tradição vicinal, distribuída na vizinhança: “A distribuição de carne de porco é a oportunidade apreciável para remediar a dificuldade crescente de obter ração cárnea, mantendo a dieta mais completa e saborosa” (Candido). O sistema vicinal é a ordem que rege a vida econômica, política, religiosa, assistencial e moral do bairro caipira, sendo responsável por sua homogeneidade social, uma vez que não favorece o aparecimento de clivagens sociais relevantes.
No filme, temos a oportunidade de contrastar essa realidade da cultura caipira tradicional com seu desdobramento posterior quando os protagonistas fogem para casar. É neste momento que podemos começar a ver a influência do elemento urbano, é quando há a primeira relação de troca mercantil (venda do caprino de Nhô Quim e compra de alimento), quando aparece a sociedade em sua face normatizadora (contrato de casamento), quando as clivagens sociais se tornam nitidamente reconhecíveis (juiz de paz devidamente vestido e com domínio da escrita frente ao casal mal trajado e analfabeto.) É, neste momento do filme, que a fase de transição do universo caipira se torna mais nítida. É onde, a partir da leitura de Candido, podemos antever que aquelas moedas trocadas pelo bode, no filme, representam a renuncia do caipira de sua tradição, baseada no equilíbrio entre o trabalho agrícola e suas atividades religiosas, comemorativas, o lazer e suas práticas vicinais. O mercado lhe subtrairá o tempo ordenado neste equilíbrio pela exigência de uma produção laboriosa em troca de bens simbolicamente nunca alcançáveis. Buscando um novo paralelo em Darcy Ribeiro, o mercado “...cria um novo mundo para o qual não há lugar mais para as formas de vida não mercantis do caipira, nem para a manutenção de suas crenças tradicionais, de seus hábitos arcaicos e de sua economia familiar. Com a difusão desse sistema novo, o caipira vê desaparecerem, por inviáveis, as formas de solidariedade vicinal e de compadrio, substituídas por relações comerciais.”
[4]A Marvada CidadeO filme finaliza com o previsível desfecho do desejo de Nhô Quim: sua completa inserção na cultura urbana, ocupando o lugar do excedente necessário ao sistema para a manutenção de uma mão de obra barata e sempre acessível nas periferias da grande cidade. Podemos assistir a Nhô Quim degustando sua carne em um churrasco no qual, de certa forma, traços de seus hábitos vicinais sobrevivem na relação com seus companheiros de periferia. No entanto não se pode esquecer que a proximidade com o centro urbano o trouxe à novas carnes que apenas alargam a fissura que o separa de sua origem e autonomia.
[1] Darcy RIBEIRO, O Povo Brasileiro, 1ª edição, Rio de Janeiro, Cia das Letras, 1995, pg. 363.
[2] Antônio CANDIDO, depoimento no programa “O Brasil Caípira” , da série de documentários “O Povo Brasileiro” de Isa Ferraz baseado na obra de Darcy Ribeiro.
[3] Op. Cit.
[4] Darcy Ribeiro, op. cit