sexta-feira, 21 de agosto de 2009

**** EM CARTAZ****

PALÁCIO DE NEVE
sexta e sábado às 21h
Domingo às 20h
15,00 e 7,00
Instituto do Ator
Rua da Lapa 161 (esquina com Joaquim Silva)
21 2221-8040

quarta-feira, 19 de março de 2008

Entrevista com o crítico de arte Luiz Camillo Osório

Entrevista obtida no site Forum Permanente - Museus de arte entre o público e o privado, no endereço http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.rede/numero/numero-nove/entrevista-com-luis-camillo-osorio/

– Para começar, gostaríamos que você falasse sobre a sua formação e o que te levou a se dedicar à critica de arte.

LCO – Meu primeiro contato mais sério com arte se deu logo depois de me formar aqui na PUC-RJ, em economia, e viajar para Londres. Tinha acabado de completar 22 anos. Lá, fiz um diploma em história da arte, visitava quase diariamente os museus (que eram grátis) e ouvi muita música pop - isso entre 1985 e 1988. De volta ao Brasil, fui fazer mestrado e doutorado em filosofia (concluído em 1998), também na PUC, estudando com Eduardo Jardim (meu orientador), Katia Muricy, Antonio Abranches e Ronaldo Brito. Nunca quis me isolar na academia e assim que terminei meu mestrado já fiz uma primeira curadoria com artistas amigos. Em 1996, quando abriu o MAC de Niterói, fui trabalhar lá e fiz uma série de exposições com artistas convidados e com a coleção Satamini. Em 1998 comecei a escrever críticas para o jornal O Globo. Isto ajudou o meu texto, que foi ficando mais solto, conciso e até mesmo mais preciso. Sabemos das restrições à crítica jornalística hoje, mas ainda me parece um lugar a ser exercitado, pois sua dimensão pública ainda não foi substituída pelas mídias eletrônicas. O trânsito entre academia e meio de arte é o que mais me interessa. Além das leituras fundamentais (e heterodoxas) e do contato estreito com a produção de arte, minha formação não estaria completa sem o ateliê e a conversa com artistas amigos, o Maracanã e a música pop (do Lou Reed ao DJ Dolores).

– Você fala que uma obra de arte provoca uma sensação de suspensão, um arrebatamento, como isso se relaciona com uma racionalização necessária para a crítica?

LCO – De fato, o arrebatamento ou essa surpresa que constitui uma resposta mais contundente diante do trabalho é raríssimo. Não pode ser de outra maneira. Não vejo a racionalização, o exercício argumentativo, como uma domesticação desse arrebatamento inicial. Acho que a natureza do arrebatamento é a sua excepcionalidade e o esforço compreensivo não deve ser algo que o iniba, que o aprisione conceitualmente. O mais importante na crítica é tentar articular o que está sendo escrito e experimentado com a potencialização das obras e da própria vida.

– A respeito da forma da escrita, qual seria o grau e os parâmetros de inventividade de um texto de critica de arte? O quanto é possível se desgarrar do objeto tratado e qual seria o limite desse deslocamento?

LCO – A questão é: como ser fiel à singularidade das obras, ao que elas têm de particular, e como repor isso em uma outra tonalidade afetiva que é a da escrita. Trata-se de uma espécie particular de tradução. Como se traduz a experiência da obra na experiência do texto? Walter Benjamin, em um ensaio sobre a tradução, privilegia o conhecimento (no sentido de vivência) da língua para a qual o texto é vertido. Isto renovaria a experiência da própria língua matricial do poema. No caso da crítica, ela deriva da obra, mas de certa maneira recria a obra. Isso é importante, dá um certo nível de criatividade à crítica. Mas é preciso estar sempre sintonizando essa criatividade para que ela não se descole da obra e vire um texto arbitrário. O importante é que a escrita não seja explicativa, mas exploratória.

– E como você pensa a escrita da história?

LCO – Acho que no caso da história, tendo o cuidado de preservar a pregnância dos acontecimentos, o que interessa na escrita é a reconfiguração de genealogias, a redescoberta de genealogias, levando em consideração sempre o presente. Mas pensando em que medida este presente influencia e é influenciado pelo passado e abre possibilidades em relação ao futuro. Acho interessante o modo como T.S. Eliot pensa as relações de influência: não como uma linha de mão única, por exemplo, de Cézanne para Picasso. Na direção inversa também há uma relação de influência, na medida em que as obras se apresentam a partir de modos de ver, sentir e pensar atuais. Os acontecimentos estão sempre se reprocessando com o andamento da própria história. Eu quero afirmar essa efetividade dos acontecimentos (e das obras), até para politicamente não cair nesse risco que é abrir mão do fato e tornar a história pura argumentação interpretativa.

– Como você pensa a questão da identidade cultural brasileira?

LCO – Essa é uma discussão difícil e que me interessa. Tem uma entrevista do Guimarães Rosa, em que perguntam a ele sobre essa questão de uma identidade cultural, de uma brasilidade, e ele dá uma resposta usando um conceito em alemão! A brasilidade para ele seria uma " fala inefável", como aquilo que se mostra e se vela ao mesmo tempo. Essa noção de brasilidade é extremamente problemática, mas eu ainda prefiro enfrentar os riscos dessa questão, do que abrir mão dela. Enfim, sem forçar muito a barra, mas forçando, quero pensar em que medida há uma experimentação civilizatória brasileira, que é, inclusive, a meu ver, muito corporal, de um "DNA delirante" que estamos produzindo há 5 séculos. Se formos pensar a crise do projeto iluminista, vivida de maneira radical depois do 11-09, a nossa não-assimilação integral do moderno ganhou uma dose de positividade. O que sempre foi um problema se tornou uma possibilidade. Nós não somos o outro e não somos o mesmo – somos o outro e o mesmo. E essa discussão, que é sempre uma discussão um pouco diluída teoricamente, que é a do multiculturalismo, nos traz certas vantagens comparativas. Ela nos é originária, não é apropriada por nós; ela é a nossa matriz. Então, se há um momento histórico em que esse nosso não-lugar pode se constituir em um sinal de renovação civilizatória é agora. Entre os fanatismos e as intolerâncias, que se reinvente nossa "complicada cordialidade".
A discussão que parece hoje novidade na Europa, de uma Estética Relacional, é parte de nossa teoria social desde Gilberto Freire e Sergio Buarque. A questão da troca cultural é uma questão muito recente para os europeus do norte e, para o bem e para o mal, com todas as loucuras e opressões da nossa colonização, uma coisa o português fez em sua perversão: ele se misturou. O que não quer dizer que não sejamos um país racista, claro que somos. Agora, há um corpo singular que se inventa nesse país, que é indefinível, que é absolutamente confuso e absolutamente experimental. Essa é nossa origem, é o nosso destino, esses são os nossos problemas e essa é nossa esperança.

– Como essa especificidade cultural pode se constituir formalmente?

LCO – Eu acho que não tem um único modo, uma fórmula brasileira, mas há uma possibilidade de perceber processos formais que se vinculam a um processo de constituição cultural. Um certo inacabamento, uma certa fragmentação, uma certa precariedade... Ao mesmo tempo há o rigor próprio disso. O rigor não é um critério objetivo a ser aplicado como um metro. Ele se universaliza pelo singular. No João Gilberto, por exemplo, tudo é rigor e tudo é despojamento. O Brasil tem também essa especificidade da absorção e reapropriação cultural, é muito nítido como o estrangeiro se integra facilmente, justamente por conta da nossa não-essencialidade de origem. Por isso, como dizia o Pedrosa, estamos condenados ao moderno. Então acho que esses vários processos formais podem ser identificados em várias poéticas, mais que em uma "forma brasileira".

– Como você vê a "internacionalização da arte brasileira" que toma corpo no começo dos anos 90?

LCO – A mencionada internacionalização veio por conta de valores de mercado, de uma necessidade do mercado por uma arte "diferente", então brota essa leitura sempre carnavalizante do Brasil que é cheia de distorções e problemas. Por isso, temos que fortalecer a inserção internacional da crítica e da história da arte produzidas aqui. Um texto como a Teoria do Não-objeto do Ferreira Gullar, pode ser colocado na discussão da história da arte daquele momento. Cabe a nós constituir os parâmetros, as razões e os sentidos da nossa própria arte. Sou otimista neste aspecto, melhoramos a discussão universitária, temos publicado uma boa quantidade de livros e nossos museus têm fortalecido seu trabalho educativo. Falta uma revista de cultura e melhor distribuição da crítica universitária.

* Entrevista concedida ao grupo de críticos do Centro Universitário Maria Antonia em 2004

terça-feira, 18 de março de 2008

PARADISE NOW E ANTÍGONA


A força do clássico*
Por Carlos Tonelli

Em “Paradise Now”, filme do diretor palestino Hany Abu-Assad, o personagem Said, que carrega a mancha de ser filho de um colaboracionista assassinado por palestinos, é chamado para atuar como um homem-bomba. Frente ao poder tirânico da ocupação Israelense na palestina, Said vê no ato suicida a única ação digna possível, pois esta lhe permitirá, mais do que o paraíso, enterrar com dignidade a memória de seu pai.
Antígona ?

Podemos ver, a partir desse exemplo, o trágico identificado em Antígona e que se mantém, imperecível e atual. A força da tragédia de Sófocles reside tanto na sua falha trágica, o excesso, quanto na maestria em que o autor contrapõe seus personagens. A impossibilidade de diálogo entre os personagens está radicada na impossibilidade de ambos quebrarem seus isolamentos. Creonte, preso a defesa de seu édito, acaba por perder aquilo pelo qual mais temia: a legitimidade de seu poder. O diálogo com Hémom evidencia mais do que a tirania de Creonte, mas sua própria cegueira:

“...quem julga que é o único que pensa bem, ou que tem uma língua ou espírito como mais ninguém, este, quando posto a nu, vê-se que é oco.” (vv 706-710)

Analogamente, Auschwitz pôs a nu um regime que, pela defesa de um estado lastreado por uma "raça superior", “emparedou” os elementos não assimiláveis de uma “etnia contaminada” por um crime religioso que deveria ser corrigido por total aniquilamento.

Antígona, por sua vez, ao medir o peso do édito de Creonte se sente obrigada a ultrapassar a medida de seus limites estabelecidos e a agir guiada por seu próprio senso de justiça, amparada por um direito da tradição. Seguindo com os paralelos, não seria a postura dos que, fechados e apavorados, aplaudem milícias armadas que garantiriam uma segurança que o Estado já não provê, como no Rio de Janeiro?

O senso comum tende a ler uma Ismene tímida e fraca em contraste a rígida postura de sua irmã. No entanto, Ismene resiste mais do que aos apelos de sua irmã, ela resiste à tentação de se salvar perante aos Deuses, não tanto por fraqueza diante do estado e de sua nomos (leis), mas por colocar ambas em peso de igualdade. E, não foi respeitando ao equilíbrio do estado e da tradição, que Gandhi propôs a independência da Índia ?

Personagens que, em seus isolamentos, estabelecem verdades imutáveis, obstruindo qualquer possibilidade de diálogo e perpetrando ações que vão além de seu próprio controle. O trágico se repete no moderno e Sófocles se faz atual e urgente, rompendo os limites de sua sociedade e nos trazendo o metron do bom-senso. Na tradução do grego para o contemporâneo, o metron perde sua força moralizante, dogmática, a nos ensinar regras de conduta dentro de determinados parâmetros de sociedade (Em Paradise Now, ninguém sai do cinema “purgado” e com convicções em relação ao conflito apresentado). No entanto, ganha potencialidade enquanto “questionamento”, nos argüindo acerca da possibilidade de prudência em nossos impasses contemporâneos. O equilíbrio é uma possibilidade real? Já que não temos mais certezas, o metron deixa de ser uma referência de conduta e se converte em instrumento dialético de leitura da realidade. Amplia nossa consciência em relação ao mundo e, conseqüentemente, a consciência de nossa própria ação dentro dele.
*Texto escrito como parte do trabalho do curso de Análise do Texto Teatral.

EM TEMPO DE JOGO


Uma reflexão sobre a atualidade da noção de jogo em Schiller*
Por Carlos Tonelli
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“Not long ago [...] we were reading by the light of oil lamps.
Now we divide our attention between the TV,
our computer screens and our mobile phones.
But the huge technological leap wasn't supported by
any philosophical or psychological thought,
nor by any great art. People have forgotten
their souls - they haven't time
or space to devote to them.”
Zbigniew Preisner, Compositor

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O Critico teatral John Grill escreve, em relação à encenação de Hamletmachine por Robert Wilson que: “Quinze atores enfilerados nas laterais do palco movem-se um a um formando um estranho tableau; mulheres voam em cadeira inclinadas sobre uma longa e fina mesa de metal, outra se arrasta para se esconder numa árvore; uma outra gira uma cadeira driblando e fazendo caretas. Homens andam com arrogância, saltam, voam e um, usado preto dos pés a cabeça, corre para tapar os olhos de uma mulher vestida como uma condessa espanhola.”[1] Depois desta descrição, mais adiante, o crítico acrescenta: “Como acontece com as outras obras desse autor, se você aceita sua excêntrica premissa teatral, chega o momento em que a mágica começa a fazer efeito.”
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Qual seria a “excêntrica premissa teatral” de Heiner Miller e Robert Wilson? E como sua “mágica” começa a fazer efeito? Para completar, recorro a uma observação de Galizia em relação ao trabalho de Wilson: “Como não existe, aqui, desenvolvimento narrativo, todas as atividades no palco permanecem em um estado de ‘presente absoluto’, através da contínua estimulação da energia do perfomer.”[2] Este “presente absoluto” perseguido por Wilson não seria uma das características recorrentes em diversas experiências artísticas contemporâneas que buscam, paradoxalmente, afirmar sua especificidade enquanto linguagem e, ao mesmo tempo, resistem a uma função semântica? Podemos dizer que a luta travada no campo da arte contemporânea, no qual a palavra tem força não pelo que diz mas simplesmente na tentativa de ser palavra, de um significante que se recusa a ser veículo de um significado, remonta a busca de um “puro belo”. A busca desta “presença absoluta”, que é aparência, e sua impossibilidade (porque é sempre fugidia para o campo da significação), revela uma dinâmica em que a arte luta para não dizer nada e, assim, poder ser algo. Se a trincheira da arte é travada no campo de nossas faculdades mentais, é pelo “jogo lúdico”, conforme desenvolvido por Schiller, que o homem terá a possibilidade de combate. É a “educação estética” que definirá a possibilidade da “mágica” acontecer na platéia de Wilson.

A partir da teoria estética desenvolvida por Kant na Crítica do Juízo, Schiller encontra a base teórica que utiliza para desenvolver a noção de “jogo estético”, agregando ao postulado filosófico de Kant uma dinâmica política, pensando-a a partir de uma perspectiva formativa do homem e da sociedade. A conseqüência, ainda válida ao mundo contemporâneo, é uma abertura para se debater a própria práxis artística e, no interior deste debate, resgatar do hall de clichês do século XX o conceito de belo e reintroduzi-lo na arena Estética. Pensar a atualidade a partir da noção de jogo desenvolvida por Schiller é possibilitar, como mostra Marcuse, uma revalorização de nossas faculdades sensíveis sem que isso implique um retorno ao “Estado Natural”, pois essa valorização não se dá em detrimento do entendimento. Igualmente, adverte para o risco da dominância de uma subjetividade prática que, como na época de Schiller, sobrepunha o bem comum a liberdade individual, desestabilizando o frágil paradoxo que equilibra a unidade do Estado (ideal) e a multiplicidade do Sujeito (real).

Se, no início de suas cartas, Schiller via o estético como instrumento transformador que possibilitaria um salto do homem natural para o homem moral, sem que este se convertesse em um tirano de si mesmo, um bárbaro, ao final é o próprio estado estético que se torna a aspiração de Schiller. Nem o Estado natural no qual o homem é prisioneiro de suas determinações naturais[3] nem o estado moral no qual a liberdade formal aparta o homem da natureza. E sim, o estado estético, no qual a Arte deixa de servir a política e passa a ser, ela mesma, política. “O livre jogo estético e a universalidade do julgamento de um gosto definem uma liberdade e uma igualdade novas, diferente das que o governo revolucionário quis impor sob a forma de uma lei: uma liberdade e uma igualdade não mais abstratas, mas sensíveis.”[4]. No entanto, isto não significa afirmar uma perda de especificidade da arte. Pelo contrário, a arte só pode, realmente, ser política, na medida em que preserva sua especificidade estética, daí a importância da reintrodução da noção de beleza enquanto fenômeno deste jogo das faculdades investigado por Schiller. Caso contrário, destituída de noção do belo, a arte oscilaria entre a subserviência a dois patrões, ora instrumento do estado moral ora, fetichizando-se, objeto do estado natural. Ou conforme Rancière: “O belo é o que resiste ao mesmo tempo à determinação conceitual e a atração dos bens consumíveis”. Convém, neste ponto, refletir um pouco em relação ao conceito de beleza em Kant.

É pelo prazer comunicável que demandamos uma objetividade e uma universalidade do belo. Porém, com a ausência de um conceito determinado esta demanda não se configura normativamente, ou, quando há intervenção conceitual: “o juízo estético deixa de ser puro, ao mesmo tempo que a beleza deixa de ser livre.”[5]. O “isto é belo” é uma sentença sobre si, um “euautonomo”[6]. O que não exclui a participação do entendimento, pois, sem ele, seria impossível a reflexão formal do objeto singular: “...a imaginação em sua liberdade pura entra em acordo com o entendimento em sua legalidade não especificada. Poder-se-ia dizer com rigor que a imaginação, aqui, ‘esquematiza sem conceito’”[7]. Este “esquematizar sem conceito” que Deleuze aponta são as próprias faculdades operando em total potencialidade, pois, esvaziadas de um fim, não encontram um limite conceitual. Ou, pelas palavras de Schiller:
“Numa obra de arte verdadeiramente bela o conteúdo nada deve fazer, a forma é tudo; somente pela forma que se age sobre o homem como todo, ao passo que o conteúdo visa a forças particulares”[8]
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Façamos um parênteses aqui para ousarmos incluir no debate uma noção temporal. O conceito só existe como uma rememoração no tempo. Ele é um resultado do entendimento que opera lastreado pelo tempo passado para, sobre o tempo presente, projetar-lhe um fim . O “esquematizar sem conceito” seria, portanto, um “esquematizar sem passado”. A faculdade imaginativa na experiência estética é livre porque é liberta de apriorismos. Somos remetidos para fora do tempo e, simultaneamente, presentificados pela matéria. Não se trata de uma atemporalidade (como no caso do sublime, diante do informe ou disforme), mas de um tensionamento de nossa persepção temporal. Via afecção, somos confrontados pela matéria que age sobre nós e nos demanda sua reflexão singular na imaginação, isto é, a forma. Mas, no juízo estético, esta forma é engendrada pelo entendimento em um “em si”, desprovido de conceito. Dá-se, assim, na experiência estética, uma experiência inaugural no tempo, porque é sua absoluta presentificação, mas não do tempo, porque não provém de sua causalidade. O resultado é que, conforme Deleuze aponta “a imaginação encontra-se liberada da coação do entendimento que ela sofria ainda no esquematismo; torna-se capaz de refletir a forma livremente.”
Enfim, a experiência estética contém uma paradoxal resistência em relação ao tempo: uma resistência de adesão, o que lhe confere uma autonomia sem a qual seria mero objeto de representação e, simultaneamente, uma resistência a dissidência, pois, operando no reino das faculdades sensíveis ela é uma intervenção na percepção física no tempo. Em outras palavras, pode-se falar que, entre o homem natural, prisioneiro de seu tempo sensível e o homem moral, prisioneiro de seu tempo histórico, há o homem estético, livre em seu anacronismo.

Voltando ao debate em relação à relevância da noção de jogo desenvolvida por Schiller para o mundo contemporâneo, recorro primeiro, para ler as bases culturais desse mundo, a análise desenvolvida por Marcuse onde:
“A cultura é produto da combinação e interação desses dois impulsos [sensual e formal]. Mas na civilização estabelecida, a sua relação tem sido antagônica, em vez de reconciliar ambos os impulsos, tornando a sensibilidade racional e a razão sensual, a civilização submeteu à razão de tal modo que a primeira, se acaso logra reafirmar-se, o faz de formas destrutivas e selvagens, enquanto a tirania da razão empobrece e barbariza a sensualidade.”[9].
Marcuse segue lembrando que a solução apontada por Schiller para superação desse impasse passa pela atuação de um terceiro impulso, o “impulso lúdico”, que libertaria o homem das “...coações, externas e internas, físicas e morais – quando não é reprimido pela lei nem pela necessidade”. Porém, a estrutura coercitiva da qual Marcuse se refere constitui o próprio princípio de realidade na qual o homem se equilibra no jogo de suas faculdades e, portanto, sua superação só seria possível com “...uma revolução total no modo de percepção e sentimento”. Ressalta-se que para Marcuse, neste ponto, a universalidade da experiência estética só é efetiva politicamente enquanto uma realidade instalada “...tal revolução só se torna possível se a civilização tiver atingido a mais alta maturidade física e intelectual”, ou seja, a universalidade estética não age por sua própria possibilidade de vir-a-ser. Mas, se entendermos que os três tempos ___ do estado natural, moral e estético, não estão alinhados em uma perspectiva histórica linear, e sim que são tempos que co-existem no espaço, então podemos entender que o poder transformador do impulso lúdico já é operante per sí. O próprio Marcuse indica que é através do jogo lúdico das faculdades que o homem terá a possibilidade de “abolir os controles repressivos que o homem impôs à sensualidade.”[10] sem que esta abolição signifique devolver o homem à predominância de seus impulsos naturais, risco anulado pela mediação do prazer comunicável, que aspira a uma universalidade: “o próprio indivíduo livre deve originar a harmonia entre a gratificação individual e a universal”[11].

Uma das conseqüências implicada nesta harmonia das faculdades, é a condição de “contemplação”[12]. Ou, conforme Schiller: “O desenvolvimento precoce ou tardio do impulso estético para a arte depende do carinho com que o homem saiba deter-se na pura aparência.”[13] Este “deter-se na pura aparência” já representa uma revolução no modo de apreciação da obra de arte e, na verdade, em seu próprio posicionamento enquanto obra, isto é, “objeto” de apreciação. A experiência estética não é proporcionada por uma satisfação utilitária. A beleza, portanto, não reside em um objeto de representação. Ela se dá na própria relação entre o indivíduo e a obra, seu processo de significação não é previamente determinado (nem sequer pelo artista) mas se dá singular e inauguralmente no presente da apreciação. Ambos, homem e obra, são chamados pela experiência para marcarem suas presenças naquele tempo-instante. A contemplação acima referida não é um puro estado passivo do homem distanciado da obra, mas um estado ativo de interação deste com a obra sem mediações representacionais. Contemplar não é alienar-se, mas um ato criativo de interação e contato entre o homem e o “objeto” de arte no qual, os dois, são recriados mutuamente em um constante processo de significação chamado “Obra”. Daí que pensar a arte fora de qualquer utilitarismo e devolver-lhe sua capacidade de estar no mundo de forma desinteressada não significa sua alienação deste mesmo mundo. Sua inutilidade não é inconseqüente. Pelo contrário, é por ela que podemos ter suspenso o princípio de realidade que rege nosso tempo e, assim, vê-lo enquanto uma realidade historicamente construída.

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Se, em sua dramaturgia, Heiner Miller abdica da fábula não é por traição ao legado brechtiano, mas por entender que nada pode ser mais político do que uma forma livre de conteúdos conceituais, por mais dialéticos que estes sejam. Em Brecht, a história é mostrada como fábula que se mostra como fábula, construída, evidenciando seu caráter histórico, portanto cultural. Ainda assim a operação se dá sob o pilar de um tempo passado como um apelo ao futuro, ou seja, a imagem serve como suporte a uma concepção linear da história. No teatro de Miller a força política está condensada na própria imagem atualizada no palco e sua efetiva relação com o imagético da platéia. Os referentes históricos utilizados por Miller no interior de sua dramaturgia não servem a uma construção sintagmática da fábula (que nem há), mas como elementos concretizados apenas enquanto imagens, com total liberdade referencial. Podemos dizer que em Miller o histórico é que serve como suporte para a construção da imagem. Imagem que, na montagem de Robert Wilson, exige da platéia uma postura ativa, criativa, na qual os elementos plásticos não explicam o dramático, mas convivem no mesmo tempo-espaço, distendido em ritmos não cotidianos. Ou seja, o efeito de estranhamento não se dá pelo conteúdo (através do entendimento conceitual, subjetivamente), mas pela própria forma que atinge, física e imageticamente (ou, psiquicamente), a platéia.
“Não se realizando sob um conceito determinado, o livre jogo da imaginação e do entendimento não pode ser intelectualmente conhecido, mas apenas sentido.”[14]

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[1] GILL, John. Crítica internacional, in Cadernos de Teatro nº 123. Editora O Tablado, 1989.
[2] GALIZIA, (p. 84. )
[3] Schiller, F – Carta III (p. 40)
[4] Rancière
[5] Deleuze (p. 67)
[6] Deleuze (p. 67)
[7] Deleuze (p. 67)
[8] Schiller (p. 117)
[9] Marcuse (p. 167)
[10] Marcuse (p.167)
[11] Schiller (p. 138)
[12] “A natureza, o mundo objetivo, seriam então experimentados primordialmente, não como domínio sobre o homem (tal como na sociedade primitiva) nem como dominados pelo homem (tal como na civilização estabelecida) mas, pelo contrário, como objetos de contemplação.” MARCUSE (P. 168)
[13] Schiller (p.138)
[14] Deleuze (p. 68)


*Esse texto é um trabalho que escrevi como resultado do curso de Leitura da Arte, ministrado pelo Professor Luiz Camilo Osorio e que teve como objeto de estudo o livro Sobre a Formação Estética da Humanidade de SCHILLER.

A Marvada Carne


A Cultura caípira e o cinema nacional - uma análise a partir de Antônio Candido*
Por Carlos Tonelli

A partir da leitura de Antônio Candido podemos assistir ao filme “A Marvada Carne”, de André Klotzel, como uma metáfora de uma sociedade em transformação. É o ponto de suspensão em que podemos identificar os elementos de uma tradição caipira (muito bem delimitados através da linguagem, dos costumes, vestuários, alimentação, etc.) e seu contraste com uma outra dinâmica cultural, sendo que esta, apesar de só aparecer concretamente ao final do filme, está implícita desde o início, subliminarmente agindo através do desejo do protagonista, como motor de uma odisséia que o tirará do isolamento social e culminará em sua inserção na cultura urbana.

O Caipira e suas matrizes, formação no isolamento.
Na abertura do filme, nos deparamos com o caipira em sua condição originária. Filho da dinâmica bandeirante, tem como traço marcante o nomadismo e, conseqüentemente, a precariedade de uma habitação e bens materiais sempre provisórios. Sua casa é o mundo que o rodeia, a construção é apenas mais uma dormida, um rancho, no qual se abrigará durante o tempo em que sua atividade extrativista e predatória o satisfazer ali. Ou, conforme depoimento colhido por Candido “uma árvore com sombra era o bastante para um homem morar.”

Paredes de taipa, cama de palha, panela de barro em fogareiro de pedra, cuia, um pequeno roçado e, sempre, a espingarda do lado. É neste cenário, rústico, que Nhô Quim sobrevive. E é este o cenário que reflete um tipo de vida baseada numa economia fechada, no qual a precariedade de suas técnicas artesanais como, por exemplo, a queimada (erosiva a longo prazo mas satisfatória a curto) são compensadas por sua possibilidade de mobilidade, garantindo o necessário a sua subsistência. Sua produção é condicionada pela sua necessidade imediata, não visa a acumulação nem a geração de renda excedente, que proporcionaria as relações de troca características de uma sociedade de economia aberta. Segundo Candido: “Para o Caipira, a agricultura extensiva, itinerante, foi um recurso para estabelecer o equilíbrio ecológico: recurso para ajustar as necessidades de sobrevivência à falta de técnicas capazes de proporcionar rendimento maior da terra”.

E, nessa dinâmica de isolamento, seu processo de identificação é atrofiado, isto é, a herança cultural de sua ancestralidade, seja lusitana ou indígena, é reduzida aos elementos necessários a sua subsistência, perdendo os traços que o identifique à uma sociedade mais heterogenia, pois estes só se manteriam pela manutenção de uma dinâmica social mais estreita nas relações de contato. Ou, conforme Candido “...na cultura e na sociedade caipira há não apenas permanência de traços ___ dos traços que desde logo se estabelecem como “mínimo social” ____, mas retorno, perda de formas mais ricas de sociabilidade e cultura, por parte dos que iam se incorporando nela, a partir de grupos mais civilizados.” Podemos aqui estabelecer um paralelo com a afirmação do antropólogo Darcy Ribeiro, para quem, mais do que a herança que recebe de suas matrizes étnicas, a identidade do povo brasileiro e formada a partir de um processo que ele denomina como “Ninguemtude”. Ou seja, perda de sua referência paterna (lusitana), da qual é renegado, e materna (indígena), a qual renega. Isto o coloca em uma posição de “ninguém” e, a partir dessa condição, isolada, se relacionará com a realidade de forma concreta, utilizando os elementos culturais que lhe forem convenientes (mas sem rigor) para a sua satisfação. Conforme ribeiro:

“Esse modo de vida, rude e pobre, era o resultado das regressões sociais do processo deculturativo. Do tronco português, o paulista perdera a vida comunitária da vila, a disciplina patriarcal das sociedades agrárias tradicionais, o arado e a dieta baseada no trigo no azeite e no vinho. Do tronco indígena, perdera a autonomia da aldeia igualitária, toda voltada para o provimento da própria subsistência, a igualdade do trato social de sociedades não estratificadas em classes, a solidariedade da família extensa, o virtuosismo de artesãos, cujo o objetivo era viver ao ritmo que seus antepassados sempre viveram ”[1]

O resultado de um povoamento disperso com uma economia de subsistência própria do semi-nomadismo foi a formação de um indivíduo muito menos ligado a um projeto de nação ____ ao qual era alheio e dispensável na sociedade escravocrata colonial e imperial ____ e sua identificação muito mais estreitas com seu meio ambiente (provedor de sua subsistência) e em um núcleo social encerrado em relações vicinais no qual o caipira “...aparece ele próprio como seguimento de um vasto meio, ao mesmo tempo natural, social e sobrenatural.” (Candido). A simbiose do homem com seu meio ambiente pode ser constatada, no filme, a partir da utilização de figuras folclóricas e religiosas como mediadoras entre a natureza e o homem, criando um arsenal mítico rico de curupiras, sacis, e santos casamenteiros. A força mediadora desses elementos simbólicos vai sendo relativizada a partir da integração dessa sociedade no conjunto de uma sociedade mais ampla. Conforme Candido; “ Esta familiaridade do homem com a Natureza vai sendo atenuada, a medida que recursos técnicos se interpõe entre ambos, e que a subsistência não depende mais de maneira exclusiva do meio circundante.” Ou, segundo Nhô Quim: “Pois oiça o que lhe digo: naqueles tempo num era cumo hoje não, naqueles tempo acuntecia muita coisa!”

Enfim, podemos resumir a condição originária do caipira pela fala de Nhô Quim no plano sequência que abre o filme: “Parece inté qui tô vendo... eu ali vivendo minha vida no zeu, suzinho, suzinho, suzinho... era eu e Deu.”

O elemento desestabilizador
Algo de novo começa a operar em Nhô Quim. Não basta mais sua rotina de “sol à sol”. um forte desejo o faz questionar a mesmice de sua dieta de “farinha, feijão e arroz”. Não basta a carne de caça. Nhô Quim quer mais, quer carne de Gado, produto fora do alcance de sua atividade econômica, que é baseada no roçado de subsistência e na caça. Produto que depende da atividade pecuária. Atividade que é uma cultura sujeita a lógica de mercado. Lógica que é estranha para Nhô Quim. Podemos perceber então como que, através da carne, um desejo, o cineasta introduz no filme o elemento urbano. Sem recorrer a imagens visualmente contrastantes entre o caipira e o urbano, o diretor consegue inserir o elemento de desestabilização (urbano) utilizando unicamente seu potencial simbólico a partir do que Candido identifica como “fome psíquica”. Ou seja, mais do que a fome biológica, uma fome simbólica, provocada por um alimento que, escasso na dieta rural, “...constitui fator de insegurança, interferindo no equilíbrio geral da personalidade.” A carne de gado sintetiza, aqui, um ponto de transição. A perda de um elemento da velha tradição caipira não é compensada pela substituição de seu equivalente urbano, que têm agregado ao seu valor material o status de “civilidade”. Conforme Candido: “Uma importante necessidade alimentar, como a carne, sofre severa restrição, pois a diminuição da caça não é compensada por um abastecimento regular de carne de vaca.”. É na resolução desse impasse que Nhô Quim se lança ao mundo, a novos “ranchos” do universo caipira.

O Arraial, sistema vicinal de sociedade
Nhô Quim nos conduz ao mundo caipira em sua situação social nuclear básica: o bairro (ou arraial). O cenário é de poucas casas esparsas em meio a um vale, correspondendo ao depoimento de Candido: “A unidade básica da cultura caipira é o bairro. O bairro é aquela porção do território em que as pessoas não têm contato imediato, mas na qual todos se sentem como pertencendo a uma mesma comunidade”[2]. Podemos sintetizar na afirmação de um caboclo mencionado por Candido no mesmo depoimento: “O bairro é uma naçãozinha”

Logo em seu primeiro diálogo o personagem central revela vários elementos comportamentais característicos do caipira. A começar pela receptividade do anfitrião, Nhô Tôto, que ao perceber o estranho visitante em suas paragens, responde a todas as perguntas laconicamente, se esquivando em dar o nome do vilarejo e até desconhecendo seu irmão. A reação arredia de Nhô Tôto não nega a hospitalidade caipira, que será comprovada adiante, mas confirma a fama de desconfiança que lhe é típica. Em detrimento dos lugares comuns que se fixaram no discurso em relação a rudeza social do caipira, como sendo conseqüência, por exemplo, de uma herança de sua genética indígena ou a uma preservação dos hábitos bandeirantes, Candido afirma que esta resulta muito mais de sua condição estrutural imediata, baseada na economia fechada: “O fator principal se encontra todavia no próprio tipo de economia e povoamento, que ilhava as choupanas e os bairros pela agricultura itinerante de subsistência”. Ou ainda, “É que os costumes ligados à atividade agrícola seminômade e ao povoamento esparso não podiam favorecer amenidade no trato, e davam lugar as maneiras esquivas, de pouco desenvolvimento mental e social próprios do homem segregado.”

Um dado curioso na cena anteriormente mencionada, que se passa em um contexto caipira tradicional, anterior às transformações da urbanização, é que nela já podemos identificar um elemento que será embrionário da transformação da dinâmica da sociedade caipira: o bloco familiar. Quando a esposa de Nhô Tôto nos informa da viúva do irmão deste, ela nos indica que dentro do universo do arraial, que tem por formação social o sistema vicinal, já está inserido um núcleo familiar que irá estreitar a formação social mínima do sistema vicinal: “Entre estas formações, mencionamos o significado novo adquirido pelos ´blocos familiares`, isto é, a vizinhança imediata de membros da mesma família, formando, dentro do grupo, um subgrupo coeso e mais disposto a solidariedade vicinal.”

Outro elemento comportamental que aparece reiterativamente no filme é o Lazer. Segundo Candido, a atividade de lazer não está ligada a uma mera atividade recreativa, ela não se dá como uma ruptura do cotidiano (como nas sociedades urbanas). O lazer constitui um importante elemento da subsistência caipira, vital para sua dieta alimentar, através da caça e da pesca.

Mas, voltando ao bairro, podemos verificar no filme diversos momentos que confirmam o depoimento de Candido no qual: “O caipira isolado dos centros urbanos , periodicamente, se encontra em função das necessidades comunitárias do bairro.”[3]. Assim, temos o exemplo da construção da casa de Nho Quim que, sem a ajuda dos vizinhos, não poderia ser construída. Podemos ver como que o mutirão aparece como compensador de uma sociedade não-mercantilizada, na qual a relação de trabalho não é normatizada por um contrato mas socializada por laços de solidariedade e marcada pelo lúdico e o festivo. O mesmo festivo que serve como premiação de um coletivo em uma tarefa laborativa (construção da casa) é o que serve como liga da festa religiosa, no qual todo o conjunto daquela sociedade mobiliza suas forças para sua realização.

É a partir da mesma lógica do sistema vicinal que se busca sanar as deficiências geradas por deficiências locais e econômicas. No filme, por exemplo, podemos ver a matança de um porco que terá a carne, conforme a tradição vicinal, distribuída na vizinhança: “A distribuição de carne de porco é a oportunidade apreciável para remediar a dificuldade crescente de obter ração cárnea, mantendo a dieta mais completa e saborosa” (Candido). O sistema vicinal é a ordem que rege a vida econômica, política, religiosa, assistencial e moral do bairro caipira, sendo responsável por sua homogeneidade social, uma vez que não favorece o aparecimento de clivagens sociais relevantes.

No filme, temos a oportunidade de contrastar essa realidade da cultura caipira tradicional com seu desdobramento posterior quando os protagonistas fogem para casar. É neste momento que podemos começar a ver a influência do elemento urbano, é quando há a primeira relação de troca mercantil (venda do caprino de Nhô Quim e compra de alimento), quando aparece a sociedade em sua face normatizadora (contrato de casamento), quando as clivagens sociais se tornam nitidamente reconhecíveis (juiz de paz devidamente vestido e com domínio da escrita frente ao casal mal trajado e analfabeto.) É, neste momento do filme, que a fase de transição do universo caipira se torna mais nítida. É onde, a partir da leitura de Candido, podemos antever que aquelas moedas trocadas pelo bode, no filme, representam a renuncia do caipira de sua tradição, baseada no equilíbrio entre o trabalho agrícola e suas atividades religiosas, comemorativas, o lazer e suas práticas vicinais. O mercado lhe subtrairá o tempo ordenado neste equilíbrio pela exigência de uma produção laboriosa em troca de bens simbolicamente nunca alcançáveis. Buscando um novo paralelo em Darcy Ribeiro, o mercado “...cria um novo mundo para o qual não há lugar mais para as formas de vida não mercantis do caipira, nem para a manutenção de suas crenças tradicionais, de seus hábitos arcaicos e de sua economia familiar. Com a difusão desse sistema novo, o caipira vê desaparecerem, por inviáveis, as formas de solidariedade vicinal e de compadrio, substituídas por relações comerciais.”[4]

A Marvada Cidade
O filme finaliza com o previsível desfecho do desejo de Nhô Quim: sua completa inserção na cultura urbana, ocupando o lugar do excedente necessário ao sistema para a manutenção de uma mão de obra barata e sempre acessível nas periferias da grande cidade. Podemos assistir a Nhô Quim degustando sua carne em um churrasco no qual, de certa forma, traços de seus hábitos vicinais sobrevivem na relação com seus companheiros de periferia. No entanto não se pode esquecer que a proximidade com o centro urbano o trouxe à novas carnes que apenas alargam a fissura que o separa de sua origem e autonomia.



[1] Darcy RIBEIRO, O Povo Brasileiro, 1ª edição, Rio de Janeiro, Cia das Letras, 1995, pg. 363.
[2] Antônio CANDIDO, depoimento no programa “O Brasil Caípira” , da série de documentários “O Povo Brasileiro” de Isa Ferraz baseado na obra de Darcy Ribeiro.
[3] Op. Cit.
[4] Darcy Ribeiro, op. cit
*Texto escrito como parte do trabalho do curso de Antropologia e Folclore Brasileiro, ministrado pela Profª Elisabeth Travassos